Atitude do Papa Francisco mostra importância do testamento para evitar disputas judiciais e garantir desejos após a morte
Por CompartilharnaRede
Você já parou para pensar no que acontecerá com seus bens, sonhos e conquistas quando você não estiver mais aqui? Já pensou que as pessoas que mais ama poderão ter decisões difíceis a tomar porque você não deixou instruções precisas do que gostaria?
A ideia pode parecer desconfortável, mas ignorá-la gera confusão, dor, relações rompidas e perda financeira. Por isso planejar a sucessão através de um testamento, é um gesto de cuidado e responsabilidade.
Neste texto, a advogada Simone Neri, especialista em Planejamento Matrimonial, Patrimonial e Sucessório esclarecer todas as dúvidas, dando exemplos do dia a dia, sobre a importância do testamento para qualquer pessoa, independente do patrimônio que possua.
A especialista, referência na Bahia sobre o assunto, conta, em entrevista para o BNews, porque um testamento é tão importante, o que pode acontecer quando não é feito, o que os exemplos como do Papa Francisco, Mãe Stella de Oxóssi, Gal Costa e Ary Toledo nos ensinam e porque todos devem pensar sobre isso.
A importância do testamento
A maioria das pessoas acredita que um testamento serve apenas para tratar da divisão de bens. Só que é muito mais do que isso: testamento é a expressão da última vontade de uma pessoa, através da qual é possível garantir que cada detalhe sobre seu patrimônio, mas também sobre seu legado, valores e desejos, seja respeitado.
É o que explica Dra. Simone. Além de poder direcionar pelo menos a metade de seu patrimônio para outras pessoas, herdeiros, parentes ou não, o testador pode perpetuar sua solidariedade destinando parte de seus bens a pessoas vulneráveis, a instituições filantrópicas, a pesquisa cientifica, e por aí vai.
Além disso, a lei permite que o testamento também contenha disposições de caráter não patrimonial — ou seja, declarações e vontades sobre assuntos que vão além do dinheiro ou dos bens materiais.
“Entre essas possibilidades podemos citar disposições específicas que tratem do sepultamento, cremação e rituais religiosos; destinação do próprio corpo para pesquisa científica, doação de órgãos; orientação sobre destinação de material genético (espermatozoides, óvulos e embriões congelados), o reconhecimento de filhos, a nomeação de tutor ou curador, mensagens espirituais ou morais para familiares e amigos, direcionamento sobre o uso da imagem, voz e identidade digital (é possível, por exemplo, proibir o uso de hologramas ou reproduções artificiais da voz em eventos futuros e dar instruções sobre o que deve ser feito com o perfil nas redes sociais), as possibilidades são inúmeras”, esclarece a advogada.
E continua: “Em um mundo cada vez mais digitalizado, cuidar desses detalhes também é uma forma de proteger a memória e o legado pós-morte.Além dessas possibilidades, ainda temos o testamento vital que é outro documento importante e complementar no planejamento sucessório, que permite que a pessoa manifeste previamente suas vontades sobre tratamentos de saúde caso venha a ficar inconsciente ou incapaz de decidir”.
De acordo com Dra. Simone, por meio do testamento vital, é possível determinar, por exemplo: a recusa de procedimentos de prolongamento artificial da vida, a recusa de tratamentos experimentais, o consentimento ou recusa de alimentação forçada, a referência pela morte digna, com foco em cuidados paliativos.
A advogada ressalta que o testamento vital garante autonomia e respeito à vontade pessoal, mesmo em situações extremas de vulnerabilidade, ajudando que familiares saibam qual é sua real vontade apesar de não poder expressá-la naquele momento.
O que acontece quando não existe testamento?
A especialista salienta que, quando uma pessoa falece são chamados a suceder cônjuges/companheiros, filhos e pais, em alguns casos irmãos e outros parentes também, que herdarão não conforme a sua vontade e sim de acordo com os critérios definidos na lei.
“Contudo, isso pode gerar: conflitos familiares intensos, pois é comum que herdeiros disputem bens de forma desgastante; brigas por bens de valor afetivo: como joias de família, obras de arte e propriedades especiais; litígios judiciais prolongados, custosos exaustivos; dificuldades na destinação de empresas familiares, levando até à sua falência. Sem contar que, na falta de herdeiros, os bens do falecido passam a ser incorporados ao município de onde se localizam ou a União, conforme o caso”, pontua Dra. Sinome.
O exemplo do Papa Francisco
A especialista traz um exemplo bem atual ao relatar que o Papa Francisco preparou seu testamento. “Apesar de ser uma figura religiosa e desapegada de bens materiais, ele dispôs sobre o local de sua sepultura, expressou seu desejo de ser enterrado na Basílica Papal de Santa Maria Maior, um santuário de grande significado pessoal para ele, especificou que seu túmulo deveria ser simples, no chão, com a inscrição "Franciscus" e localizado em um nicho específico da basílica. As despesas do sepultamento seriam cobertas por uma doação previamente preparada. Além disso, ele ofereceu seu sofrimento pela paz mundial e fraternidade, agradeceu àqueles que o apoiaram e pediu orações.Vejam que seu testamento impôs coerência com os valores defendidos em vida até na sua morte”, evidencia.
Quando não há testamento: O caso de Mãe Stella de Oxóssi
Dra. Simone vai além ao rememorar outro exemplo sobre a importância de se fazer um testamento. “Contrastando com o do Papa Francisco, o sepultamento de Mãe Stella de Oxóssi, uma das maiores ialorixás do país, expos a dor da falta de um testamento. Sua morte, sem disposições claras sobre seu sepultamento, gerou um conflito entre seus familiares, filhos de santo e sua companheira, sobre o local do enterro e rituais fúnebres.Sua companheira, com quem residia em Nazaré/BA, afirmou que era desejo da ialorixá ser sepultada naquela cidade, iniciou o velório e preparativos do enterro atendendo essa suposta vontade”.
E a especialista continua: “Só que, familiares e integrantes do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, fundado por Mãe Stella em Salvador/BA, entraram com uma ação judicial para que o corpo fosse trazido a capital baiana, com o argumento da necessidade de rituais do candomblé a serem realizados no terreiro antes do sepultamento. A Justiça determinou que o corpo fosse transferido para Salvador, atendendo ao pedido dos familiares e da comunidade do terreiro. A ordem judicial interrompeu o velório que acontecia em Nazaré e direcionou o corpo para a capital baiana. A história de Mãe Stella é um alerta poderoso: deixar instruções formais não é apenas um direito — é um dever para com sua história, seu legado e com aqueles que se ama”.
A advogada, referência estadual em Planejamento Matrimonial, Patrimonial e Sucessório, destaca outro caso emblemático a respeito da importância de um testamento após a morte de uma pessoa quando destaca questões envolvendo a falecida cantora baiana Gal Costa e a duplicidade de testamentos.
O caso de Gal Costa, um dos grandes ícones da música popular brasileira, ilustra vividamente a crucial importância de clareza e atualização na elaboração de um testamento. “Num primeiro, feito em 1997, época que ainda não tinha herdeiros necessários, a cantora orientou que seus bens fossem destinados a criação de uma fundação para preservar seu legado musical e nomeou suas primas para cumprir essa orientação. Em 2019, Gal revogou o primeiro testamento fazendo outro”.
Com a morte da cantora, em 2022, as primas, o filho Gabriel e uma suposta companheira passaram a disputar a herança, discutindo a validade do segundo testamento e a existência ou não de união estável. Somente no ano passado o Judiciário declarou a invalidade do primeiro testamento e, após árduo, desgastante e custoso embate jurídico, o filho e a companheira da cantora chegaram a um acordo.
“Essa situação sublinha a necessidade de que a vontade do testador seja expressa de forma inequívoca e considerando todas as circunstâncias familiares existentes no momento da elaboração. Se no segundo testamento Gal tivesse declarado que vivia em união com sua companheira não deixaria dúvida de que seriam seus herdeiros. Em suma, o caso Gal Costa serve como um alerta: para garantir que seus desejos sejam respeitados e evitar potenciais conflitos futuros, o testador deve redigir um testamento o mais claro e completo possível, refletindo sua vontade atual, considerar sua situação familiar e, principalmente, atualizá-lo sempre que houver mudança nesse contexto. A falta dessas precauções pode levar a um cenário onde a intenção original do testador é frustrada por questões legais e disputas entre herdeiros”, frisa a renomada advogada.
A nada engraçada herança do humorista Ary Toledo
Vamos para outro famoso caso envolvendo herança de celebridade. Ary Toledo, humorista célebre, faleceu aos 87 anos, deixando bens, imóveis e os direitos autorais de mais de 60 mil piadas, não teve filhos, seus pais e esposa já eram falecidos e não deixou testamento.
A mídia noticiou a possibilidade de haver 14 herdeiros, incluindo um irmão vivo e 13 sobrinhos, situação que provavelmente levará a um longo e provavelmente conflituoso inventário.
“Mas, nesse caso, se nenhum desses herdeiros, num primeiro momento, reivindicar a herança, o Estado passará a administrá-la provisoriamente por um período, à espera de que apareçam, caso contrário os bens serão incorporados ao patrimônio do Estado. Ary Toledo nos brindou com sua genialidade e sem dúvida merece toda nossa admiração e respeito. Mas poderia ter feito mais, estabelecendo regras claras para o destino de seu patrimônio beneficiando pessoas que lhe ajudaram na vida, causas que acreditava e pessoas vulneráveis”, explica a especialista.
Conclusão: Planejar é amar
Dra. Simone arremata a detalhada explicação dada ao BNews, por intermédio desta entrevista, afirmando que planejar a sucessão é um valioso ato de amor. “Protege quem amamos, preserva memórias, impede conflitos, deixa orientações para quem tiver que decidir por nós e contribuí que nossa história continue sendo contada da forma que desejamos. Por isso o planejamento sucessório é fundamental para garantir que a vontade do indivíduo seja respeitada e que os bens sejam transmitidos de maneira harmoniosa e eficiente. Nesse contexto, o testamento se revela como uma ferramenta importante e poderosa, pois permite ao testador exercer plenamente sua autonomia, orientar o futuro de seu patrimônio e evitar incertezas e litígios”.
E conclui: “Se até líderes espirituais e religiosos como o Papa Francisco reconhecem a importância de preparar um testamento, por que não seguir o exemplo? E se a triste experiência de Mãe Stella de Oxóssi, Gal Costa e Ary Toledo nos ensina algo, é que não devemos deixar o destino nas mãos do acaso ou dos tribunais.Planejar é um gesto de amor duradouro e o melhor momento para agir é agora”.
